Escrivinhando...

Diante deste grande circo, o que nos resta é sorrir!

Textos


A MENINA QUE SONHA em SER MÉDICA

 

- Crônica do dia 25 de outubro de 2022 -

 

 

 

- O QUE VOCÊ QUER SER QUANDO CRESCER?

É uma pergunta difícil a que a gente costuma fazer para a nova geração, assim como faziam para a gente quando contávamos ainda com poucos anos. Desde os primeiros aninhos, os primeiros estímulos.

 

Livros, lousas, revólveres, algemas, laboratórios de química, jogos lúdicos, chicotes, porretes, estetoscópios, conjuntos de desenho artístico. Cada pai e mãe costuma presentear seus filhos com os instrumentos de trabalho que lhe soam como dignos e que foram acessíveis ao seu nível de conhecimento, ou modelo de educação.

 

Nós que somos filhos de pais que não puderam estudar, porque foram proibidos de acessar a escola pelo Regime Militar, sabemos o que sofremos por isto. E esta carta é um grito na garganta que há muito tempo guardo e que me vejo representado nesta garota.

 

O nome dela é Milena, os sobrenomes são simples, assim como seu nome. Filha de uma mãe agricultora, de origem humilde, do sertão alagoano, que foi vítima de trabalho escravo durante a infância, motivado pelas condições sociais que o contexto local impunha.

 

Desde criança, e digo, criança da mais tenra idade, Rita tinha o dever de entregar prontos, no mínimo, quinhentos tijolos de barro para serem queimados, e isto, quando o assunto era queimar tijolos. Poderia ser quebrar pedra, ou, plantar horta.

 

Banhos quentes foi algo que foi conhecer depois de adulta. Foi esta a vida que sua mãe e seu pai puderam lhe dar com a instrução que tinham. Sua mãe, Doralice, casada com doze anos de idade, perde as contas quando o assunto é ter tido abortos por conta do trabalho excessivo que lhe causou adoecimento psiquiátrico a ponto de certa feita ela ter brigado com uma jaguatirica em cima de uma árvore, porque ela estava comendo suas galinhas.

 

E o mais assustador é que minha tia venceu essa luta. Essa mulher, acima de tudo, forte, que com o pouco que dispunha, vivendo numa sociedade em que os políticos lhe roubavam até a respiração e a violência era a única lei que existia, aos doze anos de idade já era casada e em sua adolescência a sua primeira gravidez vingaria.

 

O nome deste garoto? José. Apenas isto importa dizer, e não haveria nome mais lindo a se colocar em um filho, ainda mais pelo que representou politicamente para o município onde militou e milita até hoje. Um dos responsáveis por ajudar a pôr fim a uma dinastia de séculos, que, como qualquer outra, com o passar do tempo começa a cometer abusos.

 

Fundador do partido dos trabalhadores no município, o Professor Zé Silva, como todos conhecem onde mora, pôde fazer seu curso com seus companheiros, devido à muita teimosia, como ele próprio gostava de classificar. De chegar a praticamente morarem em um carro e comerem sardinha enlatada todos os dias para seguir com os estudos.

 

Depois de formado, prestar concurso e ter sua vaga sabotada pelo então Prefeito que ele próprio havia ajudado a chegar no poder e que passou mais de uma década minando recursos de diversas áreas de vital importância para pessoas que vivem na mais absoluta miséria, onde até mesmo a água era elemento de chantagem eleitoral pela turma de Renan Calheiros.

 

O povo esquece da chibata. Poucos homens se levantam para lutar contra ela. Nossa família é repleta destes homens e mulheres que nunca aceitaram o jugo da chibata dos que tentaram apagar as nossas origens e cegar a nossa visão para que nunca pudéssemos levantar nossos olhos e pudéssemos enxergar que esta Terra também é nossa por direito e que somos tão filhos dela quanto os que ostentam sobrenomes de imigrantes europeus que hoje repudiam os imigrantes africanos e latino americanos na terra que acolheu seus antepassados.

 

A Bisavó de Milena era Graciliana Maria da Conceição. Maior figura de resistência não conheci. A avó de Milena, minha tia, a filha mais velha de minha avó Graciliana, me contou que ela haveria nascido no município de Palmeira dos Índios e havia sido registrada no município de União dos Palmares.

 

Eu sei que minha avó contava que seu pai era loiro e tinha os olhos azuis, e era cristão. Minha avó dizia que não era necessário ir para a Igreja para se ter fé em Deus, nem se precisava de templos grandiosos para se poder rezar.

 

Que a sabedoria de Deus estava na Natureza e em tudo o que ele criou, que era harmônico, e que deveríamos, apenas, observar os animais e sua sabedoria, pois nela, tudo o que precisamos entender para bem viver, iríamos encontrar. Nos ensinava sabedoria em suas fábulas que ilustrava a palavra de Deus no tempo que os animais falavam. E deveríamos ouvir sua sabedoria, pois “os bichos são os seres mais puros da natureza, e por meio deles a gente pode ver o mal se aproximando antes que ele chegue perto de um jeito que a gente não possa correr.”.

 

Pela forma que minha avó professava sua fé, hoje, ao me recordar que coisas nítidas em minha mente e do conhecimento que mais tarde pude adquirir, fosse com viagens ou com literatura, vejo uma grande mistura da mística do povo Xukuru Kariri, de Palmeira dos Índios, com traços fortes de protestantismo e uma grande presença do ocultismo católico.

 

Os ensinamentos cristãos que ela me contava que seu pai lhe transmitia se assemelham muito ao protestantismo, o que, para suas características físicas, a época e região onde seu pai teria conhecido minha bisavó, provavelmente era um holandês ou descendente de holandês, o que justificaria o motivo de uma viagem arriscada como esta, com uma criança recém nascida, sem sequer ter sido batizada.

 

O bisavô de Milena era natural de Viçosa-AL, o último refúgio do Quilombo dos Palmares, onde houve a última resistência e posterior captura do líder revolucionário Zumbi dos Palmares. Além de muitos feitos, o maior que me foi relatado foi o de ele ter suportado mais de quarenta e cinco dias de tortura para entregar seu filho de dezesseis anos que estava fugindo da polícia depois de ter dado uma facada em um cabo do exército que lhe deu um tapa na cara.

 

Sim, meu avô, o bisavô de Milena, ficou aleijado. Mas, não, ELE NÃO ENTREGOU SEU FILHO AOS MILITARES. Meu avô, depois de quase dois meses sendo torturado para entregar o próprio filho, sem, ele próprio, ter cometido crime algum, nunca mais conseguiu segurar uma faca para cortar as próprias unhas.

 

E a árvore genealógica de luta da doce Milena é vasta. De tudo há exposto ou soterrado no histórico de nosso sangue o que é ser brasileiro e não participar da “festa da cidadania”, que não é o dia das eleições, e sim, o dia a dia dos abastados do Brasil, a quem lhes é conferido todos os direitos.

 

Milena é faixa preta em Karatê, campeã em diversos torneios, até mesmo internacionais, aluna dedicada e sonha em ser médica. O que Milena faz todos os dias? Estuda para ser médica. Depois de ter cursado a vida inteira em Escola Pública e ter sido obrigada pelos pais a trabalhar desde cedo no mercadinho da família que não restou em prosperidade para ninguém.

Ela treinou Karatê até se tornar campeã, e depois ainda teve de vencer a perda seu namorado aos dezessete anos para um câncer, e depois a mãe de sua prima, e ver seu lar ser dissolvido por inúmeros problemas sociais tão comuns a tantos brasileiros.

 

Milena quer ser médica. E o que Milena faz todos os dias? Milena estuda para ser médica.

Entra ano e sai ano, Milena estuda todos os dias, todas as tardes e sonha todas as noites em ser médica, e não conta os dias para chegar os feriados, nem fica procurando cores de esmaltes em vídeos do tik tok. Milena estuda para ser médica.

 

A Bisavó de Milena educou onze filhos fazendo jarros de barro e Milena estuda para ser médica. Enquanto milhares de garotinhas e garotinhos já nasceram com a vida feita e seus pais têm que comprar seus ingressos na universidade privada. Milena não tem pais ricos, e se fossem ricos, não são instruídos. Mas, ela sonha em ser médica, então, estuda para o vestibular.

 

Pouquíssimas amizades restaram além dos livros. Os jovens de sua idade têm outras ambições. Um passeio, uma moto bonita, uma casa, talvez. Milena quer ser médica e não tem ajuda em casa, mas, a tia é um anjo que ajuda, e ela ajuda a tia, ajudando sua filha que tem autismo, e todos se ajudam, assim.

 

Este é o meu exemplo de resistência, e o exemplo de esperança e de perseverança que eu carrego para minha vida, as mulheres e homens do meu sangue, que é o sangue e é a história de tantos outros brasileiros, que apenas conseguiram sobreviver com teimosia.

 

E pode ser que seja este o ano em que Milena realize o sonho de ser aprovada em seu curso de Medicina na USP, ou pode ser que seja ano que vem, ou no outro, ou no outro, ou no outro, mas, eu sei que será, pois em Milena reside a chama da vitória.

 

Eu quero que você saiba, Milena, que eu estou torcendo por você, como um pai torce por uma filha, como um fã torce por seu ídolo, e com esse amor eu rezo junto ao Santo de que sou devoto, a Deus Pai Todo Poderoso, que você nunca desista de seu sonho, pois esta é a chave para você realizá-lo.

 

E, que quando lhe faltarem forças, busque forças nos olhos de todos aqueles que sofreram a sua dor e que também sonham em ser felizes, mas precisam de um exemplo pra se apegarem, para sentirem que é possível chegar lá.

 

Tenha fé em Deus e nunca se aparte dele, faça sempre o bem e acredite sempre nos seus sonhos. Você vai vencer. Muita coisa nosso povo passou até você conseguir chegar até aqui e nunca foi fácil para ninguém, assim como sei que não está sendo fácil para você.

 

Cada um nasce com uma missão na vida, Milena, e todas elas são pesadas. Sei do peso que tem sobre as costas, e o sangue, o suor e as lágrimas derramadas pelo caminho. Mas, peço que não olhe para o chão, e sim para o horizonte, e veja a luz da felicidade que te aguarda por muitos motivos que irão muito além de ter o teu sonho realizado.

 

A luz da felicidade de tantas outras pessoas, de terem em você um símbolo de exemplo nesta luta, e a prova de que é possível vencer o sistema escravista se cooperarmos entre si, se não fugirmos à luta, se decidirmos sonhar e se tivermos a coragem de trilhar o caminho da realização de um sonho e depois poder abrir as portas para mais e mais pessoas.

 

Milena quer ser médica, então, Milena estuda, e eu torço por Milena para que tantas outras possam brotar no solo deste país.

 

Graciliano Tolentino
Enviado por Graciliano Tolentino em 25/10/2022
Alterado em 25/10/2022
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